sublime
A sala estéril já tinha ganho alguma cor.
As caminhadas diárias a subir e a descer, sob um sol que abatia quanto peso que ferve, marcou-lhe as costas e os ombros. Foram só levadas duas ou três t-shirts que tinha amanhado em menos de cinco minutos para uma viagem sobre a qual se desconhecia a duração.
Lavou-as todas as noites, no prazer da brisa nocturna, ansiosa pelo novo dia, mais feliz que o anterior.
Deitava-se no chão e comia chocolates miniatura enquanto falava de coisas que nem ela sabia o que eram - uma combinação de sons que concerteza resultavam em algo compreensível mas ela poderia saber o que tinha acabado de dizer pois estava sempre demasiado cansada. A maioria das vezes não obtinha resposta - já teriam adormecido.
Mas ser a última a adormecer não significava que deixasse de ser a primeira a acordar. Notava logo quando o ar quente em bafo se colava ao vidro em forma de Sol.
Tudo ardia pelo Sol. Corrimões, paredes, pisos. Mas nada disso agora interessava. O único incomodo que sentia era o de querer chegar rápido mas o fôlego dela não o permitir.
Todos os dias entrava pelas portas automáticas sem esperar sequer que se abrissem - já lhes conhecia os movimentos.
Os passos dados no espaço arejado e pejado de cheiro a desinfectantes eram marcados e também já haviam marcado o próprio chão frio - onde por vezes lhe apeteceu deitar, após longas passadas dadas no ar irrespirável de uma onda de calor.
Mas nunca o fez porque o seu corpo já estava habituado.
Frente, desvio à esquerda, elevador, frente, direita, esquerda.
Já a mente tinha em si o mapa delineado por onde ordenar o corpo. E ele obedecia ao calar-se. Jamais se queixou. Jamais pediu para parar. Pediu água somente de vez em quando - nem fome tinha.
Era, aliás, um prazer! esse ziguezague de testa a escorrer e pernas a tremer. A t-shirt colada ao corpo não lhe ocupava um segundo de consideração.
Foi, como constatou mais tarde, o maior prazer que já teve na vida. Uma sentido de vida, melhor, invencibilidade! Melhor do que qualquer coisa que se possa ganhar, é recuperar algo que não se pode perder.
O azul pastelado nas paredes e o cheiro peculiar descansavam-lhe o coração ao entrar, depois da última saída à esquerda.
Começava sempre por ver a janela e a cadeira cor-de-laranja em frente à cama que lhe fora destinada. Aí sim, e só depois de uns dez minutos a agitar todos os tecidos vestidos, que se dava ao gozo de bebericar água fresca e passar o rosto pela mesma.
Horas e horas de sorrisos, de calor, de impossibilidades possíveis e reais impossibilidades.
O Sol ia baixando mas o coração de tão inchado não admitia olhar para o relógio. Eram os funcionários quem marcavam a hora, com as visitas para os procedimentos pontuais.
De novo, caminhar. Desta feita seria direita, esquerda, frente, elevador, curva à direita e frente. Sempre frente para um dia mais ameno e menos imperdoável para qualquer inspiração.
Um dia destes, ela caminhou, como sempre, a direito após as portas automáticas. E jurou que tinha visto um anjo. Não, não - tinha visto, de facto, um anjo. Nunca naquelas corridas de idas e vindas tinha reparado que, afinal, podia comer e beber algo que não fosse um ovo mexido com água da torneira.
Hesitou. Não queria perder nem um segundo da meta já estabelecida de tempo para chegar ao destino. Passou um par de portas e, com o pescoço a receber pingas de suor, quis ir confirmar.
No meio de tanta parafernália, inutilidades e frases feitas, havia um anjo. Um anjo tão miseramente comum quanto qualquer pedra de calçada. Mas, curiosamente, era o único anjo. Tudo o resto se podia resumir aos animais que podia encontrar no zoo.
Tinha as asinhas que aferimos aos tais seres mas mais do que isso, parecia-se com alguém. Lembra-se bem de pedir ajuda para evitar que alguma mão traiçoeira fosse agarrar o anjo antes dela. Ninguém quis saber.
Ela empurrou a mala (pesadona por estes dias) para trás das costas e entre pedaços de metal e mecanismos rotativos, foi capaz, no seu suor, na sua debilidade e na sua fraqueza, de agarrar com força o anjo.
Que agora não era só um "anjo". Era ela! Era tão ela! Como foi possível encontrar a improbabilidade ali mesmo?! Lembrou-se... não existe nada de improvável - esperemos tudo.
Anjo na mão, fartou-se de respirar alto - a senhora a ser atendida estava a fazer perguntas chatas e longas e ela estava a derreter-se. Ia perder as forças e desmaiar já ali.
É que, enquanto caminhava, tinha sempre um propósito. Assim que parava a meio desse fim, uma absoluta fatiga abatia-a como nunca tinha conhecido. Não era lugar para cair para o lado!
Achou que foi clara o suficiente sem ser rude - a senhora foi "despachada". Atirou com o dinheiro para a mesa e gritou da porta "Fique com o troco!". Agora sim, podia voltar ao que conhecia. Um pouco mais ansiosa para chegar, a última curva não chegava.
O anjo que agarrava com a mão estava já quente e molhado, assim como a cabeça dela latejava.
"Tu és o anjo! Olha para o anjo! Olha o que encontrei! É igual a ti!".
Ela sorriu e coçou a testa. "Oh... que coisa... só tu para essas coisas".
Sim! Ela sabia que só ela faria uma coisa daquelas. Só ela poderia captar pormenores daquela forma, só ela poderia ser assim tão fuleira e piegas. Que bom era ouvir uma confirmação da sua pieguice!
Tirou a caneta das dezenas que carregava sempre consigo e escreveu no raio do anjo. Pediu autorização para o pendurar algures por cima da cama.
E nesse dia, sentiu orgulho. "Fi-la sorrir. Fi-la sorrir. O meu pequeno gesto... e ela lembrou-se. Só "eu" para uma coisa destas.".
E o calor diminuiu e os passos tornaram-se mais curtos e lentos. E pela primeira vez prestou atenção ao barulho das folhas das árvores, ao estômago colado de tanto stress e pouca alimentação.
Prazer! Oh, até os carros que passavam rentes à sua saia a faziam sorrir - já não eram idiotas a conduzir, eram almas caridosas que lhe davam uma suave massagem de uma aragem mais fria nas pernas que ainda tremiam e ferviam.
Pela primeira vez deixou-se adormecer em vez de pensar.
O sossego é isto - concluiu - Mas mais do que o sossego, isto é sublime. A mistura do sossego que advém de saber que fizemos certo combinado com a certeza de que vai tudo correr bem.
E as árvores que via da varanda onde agora o Sol se punha e cantavam as suas próprias canções concordaram. O coração não batia descompassado - aliás, era capaz de jurar que não o sentia de todo. Porque estava nas nuvens. E nas nuvens não é preciso um coração a sério.
- B