"minha artista"
está aqui.
a tela desenhada
coberta com manchas que não se queriam parecer com nada
até ela o ter encontrado, empoeirado, no meio de outras tralhas
"ah! que bonito! o mar de tempestade! quando fizeste isto?"
respondi que não, não era para ser o mar
nem outra coisa qualquer - só usei algumas gotas para esconder os desenhos tortos
"oh Mariana! não sejas parva! - assina lá isso e deixa-me ficar com ele"
tudo bem... toma lá o "quadro" ou seja o que for que aches que é
"vou pô-lo no meu quarto, está muito bonito - gosto mesmo!"
e deu-me um beijinho
e lembro-me bem, até ao dia de hoje, que no final do beijinho
sorria de orgulho
.
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está aqui.
mais de década depois
num canto escuro
- sobre livros tapados
que nunca vão ser lidos
- numa cadeira
que já não senta ninguém
- num quarto vazio
onde dormem o silêncio
e os meus pesadelos
dei-me conta.
ainda está aqui.
***
ela olhava para ele antes de dormir e dizia que eu era uma "excelente artista!"
envergonhava-me aos molhos
ao encontrar conhecidos na rua
apresentava-me como "a minha artista"
e eu, encolhia, sorria em tom de "cala-te" e semicerrava os olhos
para ficar logo a saber que eu ficava amuada
e que mais tarde ia ouvir, a mesma pergunta de sempre
"porque dizes isso de mim? que estupidez!"
mas era de facto
uma boa desculpa
para os cabelos cor-de-rosa
e a roupa garrida
meio orgulho meia vergonha
pessoa tão simples, normalmente de negro
acompanhada por uma "maluca" ou "artista"
que fazia doer a vista
com as cores garridas que em nada batem certo
***
e eu nunca tinha dado conta antes
que ela gostava
que eu fosse mesmo artista
apesar de ter medo
de me deixar fazer à vontade
demais para poder afundar-me
nas artes que não criam nada
e são passatempo
mas à vontade eu fazia!
e por cada hesitação a um trabalho diferente
acabava por dizer "gosto muito..."
de lágrima no olho
e um orgulho que me fazia sentir estranha...
***
e são assim pedaços de mim que vou encontrando
parecidos comigo agora
tinta sobre tinta
camada sobre camada
a tentar esconder tudo
que possa dizer mais que nada
***
saudades. merda.
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vou desenhar
cada vez mais
não volto a cair no erro
de tentar encontrar uma vida rotineira
a dita "estabilidade" só traz infelicidade
serei a "artista" que nunca quis ser
porque a tua ausência fez-me sentir de mais para não me tornar
finalmente
a tua artista
ficarias contente, com dois pingos de preocupação
5 copos de orgulho do coração
e 3 baldes de curiosidade
prometo. ias gostar. muito.
***