descaracterizar
tento perceber agora (como ontem) o porquê
as minhas cores favoritas são as CMYK. Magenta, azulão, amarelo (e uma pinta de preto).
utilizo-as em desenhos e pinturas, na roupa e maquilhagem
sempre puras - nunca misturadas. "não quero cá misturas..."
mas nos dias menos bons, ou fases mais complexas,
tudo é cinzento
a camisola tem capuz (esteja sol ou chuva)
cinzenta
as calças podem ter um padrão
mas são pretas ou cinzentas
o calçado até pode ter um brilho pequeno
mas será sempre preto
depois, há o que desaparece
as unhas, bem tratadas (quanto possível - teimo em roer), mostram restos de verniz lascado ...
cinzento
as unhas são curtas e corto até me doer a ponta dos dedos
o mínimo de tudo...
o cabelo vai-se embora - ouço algumas bocas do tipo "isso é um insulto a quem tem cancro" mas enfim
e o pouco que fica à vista, está claro,
cinzento também
eu posso, facilmente, perceber o meu humor no que diz respeito às minhas escolhas de cor
mas o que eu tento perceber mais...
é a descaracterização
o sofrimento faz-me retirar traços de expressão, de tornar a minha cara normalmente bem delineada por cores, completamente neutra.
as sobrancelhas são arrancadas e com o cabelo inexistente percebo o que possam achar
mas algo de enraízado em mim faz com que esta anulação do próprio aconteça
não tem nada a ver com género, o feminino, o andrógino
não
tem a ver com a vontade de passar despercebida, de não ser ninguém em específico, de me confundir com tantos cinzas no cimento das ruas
desde quando a anulação de características faciais pode, a certo ponto, proteger-nos da dor?
diferentemente da auto-mutilação e por aí em diante
anulação não é um acto que vai tentar cobrir outro com mais força
é precisamente a tentativa do nada
e agora, de cabeça rapada e obrigada a usar chapéus porque se sente bem o frio...
de sobrancelhas que não definem a minha expressão
e de lábios cor-de-pele
penso
"é esta a minha tentativa de fugir de mim? é esta a minha morte enquanto a rapariga que me conheço ou será que quero mesmo ser alguém novo? quero só enterrar o momento que dói ou deitar todo o passado para o lixo?"
muito se fala do masoquismo na depressão mas estas ocorrências são, no meu caso, pontuais.
e têm muito a ver com a facilidade - não ter de estar em frente a um espelho a arranjar o cabelo, não ter de tratar de nada. Basicamente, não ter de me preocupar em parecer bem.
mas nessa tentativa de me despreocupar, os outros ficam preocupados por mim - o que é perfeitamente ridículo e muito longe daquilo que possam compreender
não quero preocupar-me. não tenho querido preocupar-me.
por isso, sou cinza estes dias, e o verniz vai continuar lascado até desaparecer (ou ter paciência para o retirar), as unhas vão continuar roídas e o cabelo vai tentar crescer... mas o centímetro ou dois que já atinge é suficiente para querer voltar a retirar tudo outra vez... grrr